Crise política e tragédias naturais: quais motivos fazem milhares de haitianos migrarem para os EUA?

Bruce Petersons
Bruce Petersons

Ao longo da última semana, imagens de milhares de haitianos atravessando um rio entre o México e o Estado do Texas, nos Estados Unidos, e sendo alvo de violência de guardas da fronteira montados em cavalos e munidos de chicotes ganharam as manchetes de jornais internacionais. Na esfera local, o Haiti, marcado por tragédias naturais, começou o segundo semestre de 2021 com péssimos acontecimentos. No dia 7 de julho, o mandatário do país, presidente Jovenel Moïse, foi assassinado dentro do palácio presidencial na cidade de Porto Príncipe. Pouco mais de um mês depois, em 14 de agosto, um terremoto de magnitude 7,2 deixou mais de 2,1 mil mortos e pelo menos 30 mil desabrigados. “Desde o assassinato do presidente há uma situação na qual alguns grupos políticos estão brigando pelo poder. Boa parte desses grupos têm relações com gangues, então as coisas estão violentas. O terremoto não foi tão grave quanto o de 2010, mas foi relevante. Muita gente morreu e o mais impactante é que muitas casas foram atingidas e destruídas”, explica o professor do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV, Leonardo Paz.

A violência, inclusive, é uma das justificativas dadas pelos migrantes detidos na fronteira para não voltarem para casa. Com o acúmulo de pessoas na fronteira, o governo de Joe Biden determinou uma deportação em massa que devolvesse pelo menos 10 mil haitianos para casa, com sete voos diários de repatriação. Segundo agências internacionais, parte dos que chegavam a Porto Príncipe não tinham como voltar para as suas cidades por causa do domínio de milícias. “Agora a gente está vendo um agravamento desta crise humanitária a partir da própria crise política que vive o Haiti. O presidente foi assassinado, em seguida tivemos mais um terremoto e o custo de vida lá é muito elevado. Quando o presidente Jovenel Moïse era vivo, ele fez uma privatização dos serviços públicos no país, o que aumentou ainda mais a desigualdade e elevou ainda mais os fluxos migratórios”, lembra a professora de Relações Internacionais da Universidade Anhembi Morumbi Mariana Bernussi. Para ela, as cenas vistas ao longo da semana mostram a precariedade e vulnerabilidade social de “pessoas que já perderam tudo, inclusive, a esperança de que elas vão ter uma vida melhor no país delas”. A docente lembra que a situação vivida por eles após a chegada nos EUA, em acampamentos improvisados, com pouca alimentação e sob o intenso calor texano é tão cruel quanto a trilha percorrida por dias dentro da selva de Darién, no Panamá, e por regiões dominadas por cartéis no México.

Maioria dos migrantes haitianos sai de outros países

O docente da FGV ressalta que apesar das imagens mostrarem um número considerável de haitianos na fronteira do México com os EUA, não é possível chamar o conglomerado de “migração em massa”, já que não há centenas de milhares de haitianos deixando o país ao mesmo tempo. “A Organização Nacional de Migração aponta que você não tem hoje no Haiti um volume fora do normal de pessoas saindo do país. Ao contrário: hoje, os haitianos olham para o seu entorno e têm visto as possibilidades de lugares para ir se reduzindo”, explica. Os números internacionais são voláteis, mas a estimativa é de que 13 mil pessoas (em sua maioria haitianas) estivessem na cidade de Del Rio, no Texas, antes das deportações em massa serem iniciadas e outras 19 mil estivessem iniciando a caminhada pela América Central a partir da fronteira da Colômbia com o Panamá no começo desta semana. Os especialistas ressaltam que boa parte daqueles que se concentram na fronteira do México com os Estados Unidos já tinham migrado para outros países em anos anteriores, mas, vivendo muitas vezes à margem da sociedade com o título de refugiados, foram profundamente atingidos pela crise econômica acarretada pela pandemia da Covid-19.

“Muitos estavam no Brasil, na Colômbia, no Chile, e na verdade estão migrando para os Estados Unidos porque não estão conseguindo encontrar nesses países da América Latina empregos e uma situação de vida que seja digna, na qual eles consigam mandar dinheiro de volta para sua famílias que ficaram no Haiti”, lembra Bernussi. Ela ressalta que, ao contrário da fama, muitos países não recebem os migrantes de “braços abertos”. Entre essas nações está o Brasil. “Temos a imagem de um país acolhedor, mas a situação dos haitianos aqui não é muito boa. Há relatos de muitos que dizem que se descobriram negros no Brasil, porque sofrem preconceitos diariamente. O Brasil é um país racista, então só quando eles vieram para cá descobriram isso. Eles estavam aqui sem falar a língua, sem ter uma rede de apoio, sem poder se organizar, se sindicalizar, inclusive, sendo explorados por empresas, já que são mão de obra barata, principalmente na construção civil”, pontua.

Além das crises dentro do Haiti e na América Latina, uma possibilidade levantada pelo professor da FGV para a concentração de haitianos na fronteira é a “janela de oportunidade” vista pelo Status de Proteção Temporária concedido por Joe Biden aos moradores do país da América Central no mês de agosto. A proteção, voltada para membros de nações atingidas por crises políticas ou tragédias naturais, permite que esses cidadãos vivam e trabalhem nos EUA mesmo sem documentação e vale até fevereiro de 2023. “O que a gente acha é que isso fez com que as pessoas pensassem ‘olha, este é o momento de ir para os Estados Unidos, diante dessa postura positiva do ponto de vista de recepção de migrantes. Vamos partir para lá, porque qualquer coisa a gente tenta conseguir o asilo’. Achamos que foi muito a partir do ‘boca a boca’ mesmo, muitas pessoas de várias regiões do país se falam, têm grupos, e vão começando a confluir para ir para essa região para poder entrar nos Estados Unidos”, analisa Paz.

Outras crises levaram haitianos aos EUA em décadas passadas

A professora Mariana lembra que o histórico de migração haitiana para os Estados Unidos foi iniciado na década de 1990, mais especificamente no ano de 1991, quando um golpe militar depôs o presidente do país, Jean-Bertrand Aristide, oito meses após ele ser eleito. “Na época, o governo dos Estados Unidos foi um mediador e um articulador de acordos com o governo haitiano. Os EUA chegaram a fazer uma intervenção militar no Haiti entre 1994 e 1995”, recorda. Ela cita a forte relação de exportação têxtil da nação haitiana para a América do Norte e até mesmo a proximidade física como outros fatores de integração entre os dois países. “Essa relação desde os anos 1990 acaba por também chegar à população. Nessa época, os haitianos já viam os EUA como um destino para ter uma melhor condição de vida”, afirma. Boa parte da comunidade haitiana migrante se alocou na região de Miami, que até hoje tem um bairro chamado “Little Haiti”.

Na última quarta-feira, 22, o governo da Colômbia afirmou que monitorava 19 mil pessoas na fonteira do país latino com o Panamá que buscavam atravessar a América Central e chegar ao México para acessar os EUA. Na sexta-feira, 24, após a carta de demissão do enviado especial dos EUA ao Haiti, Daniel Foote, que considerou “desumana” a situação dos migrantes na fronteira do México com o Texas, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, reconheceu a responsabilidade pelas cenas de violações de direitos humanos testemunhadas pela imprensa internacional no local, as classificando como “uma vergonha, perigosas e erradas”. Ele prometeu “consequências” aos policiais responsáveis pelos crimes. Até aquele mesmo dia, 1,3 mil migrantes tinham sido enviados de volta ao Haiti e outros milhares continuavam na cidade de Del Río.

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