Julgamento no STF pode ameaçar a segurança de concessões

Bruce Petersons
Bruce Petersons

Desde a edição da Lei Geral de Concessões, em 1995, a possibilidade da transferência das concessões de serviços públicos ou do controle das empresas concessionárias tem sido aceita sem maiores questionamentos. Isso porque há expressa previsão legal que a autoriza (art. 27, § 1º, da Lei 8.987/95). Há poucos dias, contudo, foi iniciado o julgamento de uma ação perante o Supremo Tribunal Federal que pretende discutir a constitucionalidade da regra. Proposta pela Procuradoria Geral da República há 18 anos, a ADI 2.946 finalmente teve apresentação de voto pelo ministro Dias Toffoli, relator do caso, seguido pelo ministro Alexandre de Moraes. O voto não apenas acolhe a inconstitucionalidade da transferência da concessão em si (mas não da transferência do controle da concessionária), como sustenta a obrigatoriedade de as Administrações extinguirem e novamente licitarem as concessões que porventura tenham sido transferidas com fundamento naquela norma. Tudo isso dentro de um prazo de dois anos.

O entendimento professado é duplamente preocupante. Por um lado, revela uma compreensão jurídica do tema divorciada do atual contexto mercadológico e regulatório em que se inserem essas operações. Por outro, propõe uma modulação de efeitos com impactos avassaladores para a prática das concessões no Brasil. Ao longo dos últimos anos, as concessões se beneficiaram do desenvolvimento de arranjos em torno da reorganização empresarial dos concessionários e da negociação de ativos inerentes à operação. A transferência da concessão ou do controle dos concessionários foi um mecanismo importante neste contexto. Tudo em prol de soluções mais eficientes para as operações (o que se reflete em custos menores ao próprio usuário). A proposta de se proibir a transferência de concessões caminha na direção contrária, dificultando a realização de negócios de cessão da posição contratual que podem beneficiar as concessões.

De um ponto de vista jurídico, é equivocado alegar que a cessão da concessão viola o princípio da licitação e a previsão do art. 175 da Constituição – tese que fundamentou as alegações da PGR e dos votos proferidos. Transferir a concessão importa, sim, na troca da pessoa do concessionário, mas sem que se alterem as condições econômicas e regulamentares da concessão – que é o que realmente importa. Não há, em tese, prejuízo algum para a licitação ou para a prestação do serviço público. Vejo neste tipo de argumento mais o apego a um dogma bolorento do que a uma razão jurídica ou prática relevante.

Também me parece paradoxal que se admita a transferência do controle do concessionário, mas se proíba a transferência da concessão em si. Não há diferença prática relevante entre elas. Talvez a principal diferença jurídica esteja na segregação de responsabilidades que decorre da troca de sujeitos, inexistente na hipótese da transferência do controle. Mas mesmo a transferência da concessão em si, quando autorizada, importa, como regra, a assunção pelo novo signatário de todo o conjunto de direitos e obrigações originários, inclusive de passivos que eventualmente remanesçam em face do poder concedente. Logo, não me parece que as situações guardem diferenças relevantes, o que torna a diferenciação de tratamento jurídico, sob certo ângulo, injustificada e até conflituosa.

O ponto de maior preocupação, contudo, está na “modulação de efeitos” proposta pelos votos havidos até aqui. Caso prevaleça, as Administrações Públicas terão até dois anos para encerrar as concessões em vigor onde tenha havido a cessão do contrato (transferência da concessão) e promover novas licitações. Isso poderá impactar operações importantes como a da linha 6 do metrô de São Paulo, entre tantos outros que eventualmente passaram por transações desta natureza. O resultado será desastroso. Além das diversas dificuldades que serão enfrentadas para o desfazimento destes contratos e promoção das novas licitações, haverá dano irreparável à segurança jurídica. Ajustes de longo prazo dependem de um ambiente jurídico-institucional que garanta previsibilidade e estabilidade jurídica para o seu desenvolvimento.

Quando as regras do jogo são significativamente alteradas, com impactos no passado, corrói-se a credibilidade institucional necessária para engajar investimentos em projetos de infraestrutura. É a pior mensagem que o país pode passar para investidores e parceiros do Poder Público. É crucial, por isso, que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do caso, tome em consideração as consequências que podem advir do reconhecimento da inconstitucionalidade daquela norma, assim como da modulação de efeitos proposta. Afinal, faz 26 anos que a transferência de concessões tem sido tranquilamente admitida. Mudar o seu tratamento jurídico, a esta altura, será doloroso às futuras concessões. Mas muito mais trágico serão os seus efeitos no passado.

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