STF vai decidir sobre a constitucionalidade da privatização dos Correios

Bruce Petersons
Bruce Petersons

Tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação proposta pela Associação dos Profissionais dos Correios (ADCap), de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, que busca a declaração de inconstitucionalidade das normas que autorizaram a privatização dos Correios. Na visão da associação, por força do previsto no artigo art. 21, X, da Constituição, o serviço postal e o correio aéreo nacional apenas podem ser prestados diretamente pela União, por serem serviços de sua prestação exclusiva. Não poderiam, segundo se alega, ter a sua prestação transferida a operadores privados, nem mesmo por meio de concessões. A ação invoca a decisão do STF no âmbito da ADPF 46-7/DF, julgada em 2009, em que se reconheceu que esses serviços são serviços públicos, não podendo ser explorados pela iniciativa privada. O Procurador Geral da República, Augusto Aras, manifestou-se no mesmo sentido, sustentando ser “inconstitucional o trespasse, mediante autorização concessão ou permissão, do serviço postal e do correio aéreo nacional”. Segundo esse entendimento, o controle acionário dos Correios não poderia ser alienado, uma vez que estes serviços não poderiam ser prestados por empresas privadas. A meu juízo, não há qualquer inconstitucionalidade nas regras que autorizaram a venda da estatal. Na discussão posta no STF, parece-me haver uma incompreensão tanto acerca da extensão do dever imposto à União pela Constituição para a manutenção do serviço postal como do entendimento professado no precedente do STF invocado.

Em primeiro lugar, não é possível depreender do conteúdo da decisão do STF (na ADPF46-7/DF) a conclusão pela impossibilidade do trespasse da prestação dos serviços postais – mesmo aqueles considerados serviços públicos – a operadores privados. Embora o Supremo tenha reconhecido que certos serviços postais são, sim, serviços públicos (como o transporte de carta, cartão-postal e correspondência agrupada), não se chegou a afirmar a impossibilidade de sua prestação indireta, mediante, por exemplo, as vias da autorização, concessão ou permissão, conforme o caso. O que se entendeu foi que tais serviços, por serem públicos, não podem ser livremente explorados pela iniciativa privada. São serviços de prestação exclusiva da União, que detém – nas palavras da decisão do STF – uma espécie de “privilegio postal”. Mas daí não se segue que sua prestação não possa ser transferida aos privados pelos meios jurídicos próprios. Afinal, os serviços públicos são sempre exclusivos do Estado (salvo aqueles que a Constituição expressamente desinterditou aos privados, como saúde e educação), mas sua prestação pode ser delegada a privados, como a própria Constituição admite. Por isso, o precede do STF não parece ter o alcance referido na ação proposta pela ADCap. Ele não se presta a fundamentar a tese da inconstitucionalidade das normas que autorizam a privatização dos Correios.

Aliás, o projeto de lei 591/2021, que pretende alterar a disciplina dos serviços postal e autorizar a desestatização dos Correios, esforçou-se em preservar o caráter de serviço público do serviço postal ao criar o serviço postal universal (que compreende atividades similares àquelas consideradas pelo STF como serviço público). Estes, segundo os termos do PL, seguirão submetidos a um regime equivalente ao do serviço público, podendo ser prestados inclusive mediante contrato de concessão. É verdade que o PL admite que todos os serviços postais possam ser explorados sob regime de direito privado, não estando ainda muito claro como conviverão regimes público (serviço postal universal) e privado – como já comentei anteriormente nesta coluna.

Mas eu iria além para afirmar que o entendimento professado pelo STF na ADP 46 não é o que melhor se compatibiliza com a Constituição. Não creio que o serviço postal tenha sido qualificado constitucionalmente como serviço público. Na minha visão, o dever imposto à União de manter o serviço postal (art. 21, X) não lhe confere qualquer exclusividade para a sua prestação, mas a obriga apenas a garantir a sua disponibilidade. A garantia da manutenção não se obtém apenas por meio da prestação direta (sob a forma de empresa pública, por exemplo), mas também pela regulação, através da indução, do fomento etc. Eventualmente a União deverá prestá-lo diretamente, mas apenas subsidiariamente, quando a iniciativa privada, uma vez estimulada, não dê conta de fazê-lo. Ou seja: o serviço postal, na minha visão, é próprio da livre iniciativa, devendo o Estado cuidar apenas de garantir a sua manutenção.

Não é esse, contudo, o entendimento que prevaleceu até aqui. O STF nitidamente já o reconheceu como serviço público. A questão é que sua caracterização como serviço público não impede a alienação do controle da ECT. Impede, sim, que os serviços postais que sejam assim definidos possam ser explorados livremente pela iniciativa privada. Sua prestação, contudo, poderá ser transferida a operadores privados por meio (por exemplo) de contratos de concessão. Isso exigirá que o processo de alienação do controle acionário dos Correios seja acompanhado da formalização de um contrato de concessão entre a companhia e a União. É um modelo típico de privatização de empresas prestadoras de serviço público. Não vejo, por isso, inconstitucionalidade nas regras que autorizaram a privatização dos Correios. Mas o tema segue em discussão, e a palavra está com o STF. Espero que, desta vez, o “monopólio” do serviço postal seja definitivamente superado, reconhecendo-o com um serviço próprio da livre iniciativa. Doze anos depois, há uma nova chance para os serviços postais.

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